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Direito público

DIREITO PÚBLICO X DIREITO PRIVADO

ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO

Doutor em Direito do Estado. Professor

Titular de Direito Administrativo da

Pontifícia Universidade Católica do

Paraná. Professor da Universidade

Federal do Paraná

DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO: PANORAMA ATUAL DA

DOUTRINA, POSSIBILIDADES DE DIFERENCIAÇÃO E

ESTABELECIMENTO DE PONTOS DE CONTATO

Tratar da incidência da lei civil na atividade administrativa exige uma

análise da evolução doutrinária acerca das relações entre Direito Público e

Direito Privado.  O esforço de estabelecer traços distintivos entre estes dois

ramos do Direito Positivo, embora remanescente da história mais longínqua, terá

interesse para o presente estudo a partir do Estado Liberal. Faz-se, necessário,

portanto, um corte histórico, dada a complexidade da matéria. DEFINIÇÃO DE ZONAS  FRONTEIRIÇAS ENTRE PÚBLICO E

PRIVADO NO ESTADO LIBERAL, ESTADO SOCIAL E ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO

No Estado Liberal, percebe-se um esforço concentrado em divisar as

fronteiras entre Direito Público e Privado. Na construção do Estado de Direito,

tratava-se de delimitar as esferas de atuação do Estado e do particular, a fim de

resguardar a liberdade diante do exercício da autoridade.

O Direito Público será, portanto, o Direito do Estado e o Direito

Privado, o direito dos indivíduos, dos particulares. “A chamada summa divisio do

direito estabelecia duas ordens distintas, impermeáveis, cada qual sendo regulada

a sua maneira. Enquanto o Direito Privado se referia aos direitos individuais e

inatos do homem, o Direito Público teria a função de tutelar os interesses gerais

da sociedade através do Estado, que deveria se abster de qualquer tipo de

incursão na órbita privada dos indivíduos.”

1

No contexto do Estado Liberal, o Direito Público passa a ser

compreendido como “repertório mínimo de disposições e instrumentos referentes

ao governo representativo” enquanto o Direito Privado radicaliza a emancipação

do indivíduo, cujo elemento central é o contrato.

2

É nesse panorama que se pode perceber uma nítida assimetria na relação

público-privado. O domínio do privado, nesse cenário em que prevalece o

liberalismo (político e econômico), é superdimensionado. A invenção

 

1

 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio.  A interdisciplinariedade no ensino jurídico: a

experiência do Direito Civil.  In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al (org.). 

Diálogos sobre  Direito Civil:  construindo a racionalidade contemporânea.  Rio de

Janeiro: Renovar, 2002.  p. 463.

2

 ARAÚJO PINTO, Cristiano Paixão.  Arqueologia de uma distinção: o público e o

privado na experiência histórica do direito.  In: PEREIRA, Cláudia Fernanda de

Oliveira [org.].  O novo Direito Administrativo brasileiro: o Estado, as Agências e o

Terceiro Setor.  Belo Horizonte: Fórum, 2003.  p. 37.moderna do indivíduo – agora libertado das ‘ordens’ ou ‘estados’ que

caracterizavam o  Antigo Regime  – permite que a forma jurídica dominante

seja a do contrato, que mantém a afirmação (mesmo que fictícia, no plano

material) de igualdade entre as partes acordantes. Como uma decorrência

natural da luta contra o Absolutismo – e também para uma justificação

operativa acerca da posição de certas camadas superiores da sociedade  – o

público, inteiramente associado ao Estado (observe-se que o século XIX é o

período de afirmação da maioria dos Estados-Nação na Europa) é visto com

desconfiança, ou mesmo reserva. [...]

É nessa quadra histórica que se inicia o interesse – ainda presente  – de

delimitar a divisão entre Direito Público e Direito Privado.

3

Rosa Maria DE CAMPOS ARANOVICH analisa a relação entre

Direito Público e Privado no auge do Estado Liberal, cujo ordenamento jurídico

centralizava-se no Código Civil e a Constituição assumia lugar periférico:

Os códigos representavam, pois, não apenas o diploma básico ou a

‘constituição’ dos indivíduos, mas bem mais, o diploma básico de toda a

ordem jurídica, disciplinando os institutos comuns de vários ramos do saber

jurídico. O Direito Privado era o direito ‘central’. Nesse sistema, as relações

do Direito Privado com o Direito Público apresentavam-se bem definidas. O

primeiro tratava de todos os direitos  naturais e inatos dos indivíduos,

enquanto ao segundo concernia a tutela dos interesses gerais, impondo limites

aos direitos dos indivíduos mas somente em razão da exigência destes. Ao

Estado era conferida a tarefa de manter a coexistência pacífica entre os

particulares para que estes livremente se desenvolvessem conforme suas

próprias regras.

 

3

 ARAUJO PINTO, op. cit., p. 36-37.O Direito Constitucional, por sua vez, nasceu nesta mesma época onde o

dogma era a rígida separação entre o Estado e a Sociedade. Como não podia

deixar de ser, seu âmbito ficava restrito a definição da estrutura e das funções

básicas do Estado ao mesmo tempo em que enunciava os direitos

fundamentais dos indivíduos, por exigência dos movimentos revolucionários

da época. Neste período em que a ação do Estado era tida como mínima em

relação à vontade privada, a afirmação dos direitos fundamentais pela

Constituição representava apenas uma garantia dos indivíduos contra o Poder

Público. Visava-se apenas a proteger a sociedade contra os ‘ataques’ do

Estado, como afirmou Raizer.

4

Uma das conquistas do Estado Liberal foi, sem dúvida, a codificação

do Direito Privado ou a codificação do Direito Civil. Anota Júlio Cesar FINGER

que “o Direito Civil codificado, em sua construção conceitualista e formaldedutiva, pretensamente completa, cumpria com excelência as funções para as

quais fora concebida. Normativamente, as conseqüências foram da ordem de

promover uma divisão entre os interesses que são acolhidos e os que são

mantidos fora do sistema jurídico. [...] Ao eleger e jurisdicizar determinadas

categorias, conceituando-as e disciplinando as relações conseqüentes, o sistema

codificado permite somente a entrada das situações reais a elas correspondentes,

permanecendo as que não sofrem a incidência das normas no campo do nãojurídico, do que não interessa para o Direito Civil. Assim, por exemplo, a quem o

sistema não concede capacidade civil não é possível contratar. Do mesmo modo,

os filhos dos pais que não podem contrair matrimônio, ao não poderem ser

reconhecidos, não são filhos, pelo que permanecem no limbo não-jurídico.”

5

 

4

 ARANOVICH, op. cit., p. 49-50.

5

 FINGER, Julio Cesar.  Constituição e Direito Privado: algumas notas sobre a chamada

constitucionalização do Direito Civil.   In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.).   A A codificação do Direito Civil, herança liberal, trouxe consigo o dogma

da completude no campo do Direito Privado (o Código tem as respostas para

todas as questões, se não está codificado não pode ser decodificado e não

pertence ao mundo jurídico), cuja influência ainda não foi de todo aniquilada.

Todavia, ao Estado Liberal, sobreveio, paulatinamente, o Estado Social,

devedor de prestações que visassem compensar os desníveis sociais. Esse Estado

se agigantará para dar conta de novas atividades. Explicando a passagem do

Estado Liberal para o Estado Social (interventor), Caio TÁCITO afirma: “a

tônica dos regimes políticos se deslocou da abstenção para a intervenção. Intervir

para preservar ¾ era o lema democrático.”

6

No Estado Social, a relação entre público  e  privado  inverte-se: ao

superdimensionamento do espaço privado sobrepor-se-á a hipertrofia do público

que tende a se esgotar no Estado. No Estado Social, a dimensão privada será

vista com desconfiança, “identificada com o egoísmo, com a própria negativa do

exercício da vida pública”.

7

No Estado Liberal, o Direito Administrativo inicia a sua formação,

enquanto o Direito Civil já conta com uma longa herança histórica. Será

justamente no final do século XIX que ele, o Direito Administrativo, começará a

se materializar. Uma de suas datas (de nascimento), mais comemoradas liga-se

ao célebre caso Blanco, ocorrido em Bordeaux, França, no ano de 1873.

O expoente máximo da teoria clássica do Direito Administrativo (final

do século XIX), subjacente à teoria liberal, é Otto MAYER. Sobre o assunto,

Maria João ESTORNINHO averba:

 

Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado.  Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2000.  p. 88-89. 

6

 TÁCITO, Perspectivas..., op. cit., p. 2.

7

 ARAÚJO PINTO, op. cit., p. 40.Pode assim dizer-se que o Direito Administrativo herdado de OTTO MAYER

é, no seu núcleo, um sistema de formas jurídicas relativas ao exercício

imperativo do poder estadual. Na verdade, no centro da doutrina jurídicoadministrativa liberal estava o acto administrativo, concebido como uma

forma de actuação a tratar doutrinalmente através dos seus ‘efeitos’ e das suas

‘conseqüências jurídicas’. Uma vez que a protecção do cidadão contra o

executivo era a principal preocupação da doutrina, a sua atenção dirigia-se

essencialmente para as condições de admissibilidade do recurso jurisdicional

e para os vícios susceptíveis de o fundamentar, bem assim como para os

pressupostos da responsabilidade administrativa. Ou seja, antes de mais nada,

para a questão do controlo jurisdicional da Administração Pública.

Completamente absorvida por essa questão da sujeição da actuação

autoritária da Administração Pública aos diversos controlos jurídicos, a

doutrina foi induzida a esquecer, de entre todas as formas de actuação

administrativa, aquelas que não se reconduziam ao esquema tradicional da

prática de actos administrativos.

8

No seio do Estado Social, o Direito Administrativo  ganha impulso

significativo, como, com argúcia, percebe Guilherme CINTRA GUIMARÃES:

O  Estado Social, também denominado de Estado do Bem-Estar Social e

Estado Providência, surge, portanto, para diminuir as desigualdades e

injustiças sociais, que permeavam o cotidiano da vida social concreta, através

de uma ampla e contundente intervenção estatal na sociedade, principalmente

na economia. De mero garantidor da autonomia e da liberdade individuais, o

Estado se transforma, então, em ator central responsável por  guiar e

implementar políticas públicas capazes de promover um desenvolvimento

 

8

 ESTORNINHO, Maria João.   A fuga para o direito privado: contributo para o

estudo da actividade de Direito Privado da Administração Pública.  Coimbra: Almedina,

1996.  p. 91.social mais justo e solidário, garantindo, além da mera igualdade formal, uma

igualdade concreta e material.

A adoção do modelo social em substituição ao modelo liberal, contudo,

acarretou um crescimento desenfreado do estado, assim como das áreas de

intervenção deste na sociedade. Essa hipertrofia do Estado resultou na crise

desse modelo social, composta basicamente por duas dimensões:  crise fiscal,

decorrente do grande aumento das atribuições estatais, o que gerou um

endividamento enorme para os cofres do Estado, e a  hiperjuridicização da

vida social, pois o direito passou a ser utilizado como instrumento

normatizador da intervenção estatal na sociedade, regulando os mais diversos

campos da realidade social, o que redundou na perda da coerência e eficácia

por parte do ordenamento jurídico.

9

No Estado Social, Cristiano Paixão ARAUJO PINTO destaca a

tendência de confusão entre os domínios do Direito Público e do Direito Privado,

antes delimitados no panorama liberal:

Com a premissa de materialização de direitos – reação ao exacerbado

formalismo do paradigma liberal – e a conseqüente transferência para o

Estado de novas funções de inclusão e compensação, a delimitação entre

Direito Público e Privado deixa de ser ontológica para assumir uma mera

feição didático-pedagógica. A rigor, todo direito é público no Estado Social.

Mantendo-se a dicotomia para fins didáticos, convém mencionar o advento

de novas formas de juridicidade e a revisão dos fundamentos das disciplinas

tradicionais. Verifica-se a tendência, em ambas as hipóteses, de confundir os

domínios – anteriormente bem delimitados – do Direito Público e do Direito

Privado.

10

 

9

 GUIMARÃES, Guilherme Cintra.  O direito administrativo e a reforma do aparelho do

Estado: uma visão autopoiética.  In: PEREIRA [org.], op. cit., p. 62.

10

 ARAÚJO PINTO, op. cit., p. 41.A crise do Estado Social possibilita a construção – ainda em andamento

– do Estado Democrático de Direito centrado na idéia de cidadania,

compreendida numa dimensão procedimental enquanto participação ativa. Este

Estado tenderia a destruir paulatinamente um paradigma, comum aos dois

modelos anteriores - o que fazia diluir o público no estatal  - por meio do resgate

da esfera privada e das pretensões de autonomia e liberdade. Se no paradigma do

Estado Liberal e do Estado Social, as esferas do público e do privado eram

tratadas como opostas, no Estado Democrático de Direito passam a ser encaradas

como complementares, eqüiprimordiais.

11

No Estado Democrático de Direito, tenta-se um novo arranjo entre

público e privado. No Direito brasileiro, a compreensão do fenômeno não pode

ser deslocada da constitucionalização do Direito Público e do Direito Privado.

Como ressalta Caitlin SAMPAIO MULHOLLAND, com respaldo na teoria de

Maria Celina BODIN DE MORAES, “desloca-se o eixo valorativo do sistema do

Código civil – como ordenador das relações privadas – para a Constituição, fonte

dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico.”

12

Por outro lado, as atenções estão concentradas na preocupação com o

redimensionamento do tamanho do Estado. Um redimensionamento não só

quantitativo (mais Estado ou menos Estado), mas também qualitativo (como o

Estado deve agir e os fins a serem perseguidos). E aqui a discussão é profunda e

as opiniões divergentes. Embora o problema adquira um panorama global, tem de

ser pensado no contexto histórico brasileiro.

A retração da política intervencionista do Estado torna-se mais

evidente, no Brasil, depois da Constituição de 1988, como chama atenção Caio

TÁCITO: “A partir da Constituição de 1988 ¾ e como reflexo de uma diretriz

 

11

 ARAÚJO PINTO, op. cit., p. 44-45.

12

 MULHOLLAND, op. cit., p. 465.marcante no campo do direito comparado ¾ evidencia-se uma nítida inversão na

política intervencionista do Estado com o retorno da iniciativa privada a áreas

ocupadas pela gestão estatal, marcando o fenômeno que, no direito espanhol, foi

batizado como a ‘fuga do Direito Administrativo’ (ver, entre outros, MARTIN

RETORTILLO ¾ Reflexiones sobre la ‘huida’ del Derecho Administrativo ¾ in

Revista de Administración Pública  ¾ vol. 140  ¾ maio-agosto 1996, p. 25 e

s.)”

13

Há defensores da diminuição do Estado como caminho para sua

eficiência: “essa modificação de enfoque se reflete com especial relevo no

Direito Administrativo. A redefinição do Estado não se reporta apenas ao

tamanho do seu aparato; ela também pressupõe o questionamento do forte apelo

hierárquico e verticalizante que norteia várias noções de Direito Administrativo

desde sua sistematização doutrinária. Figuras jurídicas clássicas como a de

‘discricionariedade da Administração’ ou a de ‘ato de império’ passam a ser

observadas, sob o ponto de vista de uma critíca ‘radicalmente’ democrática,

como esfera de atuação do poder administrativo que atuaram, por grande período

de tempo, isentas de qualquer controle ou discussão por parte da sociedade, o que

pode ser interpretado como decorrência da submissão do público ao estatal.”

14

 

Nessa perspectiva de diminuição do tamanho do Estado, caminham as

propostas de privatização das empresas estatais. A alienação do patrimônio

público (entendido como patrimônio das pessoas jurídicas integrantes da

Administração Pública indireta

15

) seria uma alternativa de aperfeiçoamento do

 

13

 TÁCITO, Perspectivas..., op. cit., p. 4.

14

 ARAÚJO PINTO, op. cit., p. 45-46.

15

 Adota-se o conceito de privatização exposado por Carlos AYRES BRITTO enquanto

“transferência do domínio público de uma empresa para o domínio privado dessa

mesma empresa, em caráter, naturalmente, oneroso ou negocial.” BRITTO, Carlos

Ayres.  Privatização das empresas estatais, à luz da Constituição.  Revista Trimestral

de Direito Público, São Paulo, n. 12, p. 126, 1995.modelo estatal. É a opini ão de Adilson ABREU DALLARI: “Hoje, com o

programa de privatização, nós temos uma separação muito clara do que é o

público e do que é o privado. Fica bem claro que a prestação de serviços

públicos, mediante concessão de serviços públicos, é uma atividade econômica

desenvolvida pelo particular mas na prestação de um serviço público. Isto é, os

aspectos econômicos, os aspectos empresariais dizem respeito à empresa

prestadora de serviços. Agora, os aspectos da prestação do serviço, dos direitos

do usuário, do controle dizem respeito ao fato de o serviço ser público. O que nós

não temos mais é o dinheiro público sendo tratado como se privado fosse.”

16

Há, contudo, opinião diametralmente oposta, como retrata o discurso

contundente de Lenio Luiz STRECK:

No Brasil, a modernidade é tardia e arcaica. O que houve (há) é um simulacro

de modernidade. Como muito bem assinala Eric Hobsbawn, o Brasil é ‘um

monumento à negligência social’, ficando atrás do Sri Lanka em vários

indicadores sociais, como mortalidade infantil e alfabetização, tudo porque o

Estado, no Sri Lanka, empenhou-se na redução das desigualdades. Ou seja,

em nosso país, as promessas da modernidade ainda não se realizaram. [...]

Daí vir a propósito (novamente) o dizer de Boaventura Santos, para quem o

Estado  não pode pretender ser fraco: ‘Precisamos de um Estado cada vez

mais forte para garantir os direitos num contexto hostil de globalização

neoliberal’. E acrescenta: ‘Fica evidente que o conceito de um Estado fraco é

um conceito fraco. (...) Hoje, forças políticas se confrontam com diferentes

concepções de reforma’. Por isto, conclui, não é possível, agora, organizar

politicamente a miséria e a exclusão, produzidas de modo desorganizado e

 

16

 DALLARI, Adilson de Abreu.   A lei de responsabilidade fiscal e a constituição

federal.  Revista Interesse Público, Porto Alegre, n. 11, p. 138, jul./set. 2001.desigual tanto globalmente quando nos contextos nacionais: ‘Nunca os

incluídos estiveram tão incluídos e os excluídos, tão excluídos.’

17

Não há como negar: a privatização segue atrelada a uma concepção de

Estado mínimo. Mas essa defesa não é politicamente neutra. Para Gilberto

DUPAS, “a redução das dimensões do Estado foi apresentada como fundamental

para resolver os problemas de um setor público estrangulado por suas dívidas. E

a chamada flexibilização do mercado de trabalho – a eliminação de certas

garantias sociais dos trabalhadores – foi colocada como condição importante para

o enfrentamento do desemprego. Ambas as proposições por vezes parecem fazer

sentido, mas não são socialmente neutras e contém vários riscos. Até porque

mercados podem ser internacionais, mas riqueza ou pobreza, e prosperidade ou

precarização, serão sempre fenômenos nacionais e locais.”

18

Destaca Diogo de FIGUEIREDO MOREIRA NETO que o primado do

Direito Civil triunfou sob os escombros do absolutismo seguido pelo primado do

 

17

 STRECK, Lenio Luiz.  A necessária constitucionalização do direito: o óbvio a ser

desvelado.  Revista do Direito,  Santa Cruz do Sul, n. 9/10, p. 53-54, jan./dez. 1998.

Invocando o pensamento de Lenio STRECK, Ingo Wolfgang SARLET defende que a

discussão, no Brasil, da proibição de retrocesso social na esfera dos direitos sociais é

“absolutamente obrigatória e inadiável.” (SARLET, Ingo Wolfgang.  A eficácia do

direito  fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos

fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro.  In:

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes.   Constituição e segurança jurídica: direito

adquirido, ato jurídico  perfeito e coisa julgada: estudos em homenagem a José Paulo

Sepúlveda Pertence.  Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 105). Nesse sentido, Mariano R.

BRITTO destaca que a substituição da regulação do Direito Público pela do Direito

Privado, típica proposta da  globalização, não deve ser desejada principalmente nos

países em desenvolvimento, pois provocadora de uma autêntico deslocamento social

para abundantes setores, gerando um custo social altíssimo. BRITTO, Mariano R. 

Derecho público y derecho privado?  Revista Iberoamericana de Derecho Público y

Administrativo, San Jose, a. 2, n. 2, p. 66, primer semestre 2002.

18

 DUPAS, Gilberto.   Tensões contemporâneas entre o público e o privado.   São

Paulo: Paz e Terra, 2003.  p. 70. Para Mariano R. BRITTO, diante de propostas de

redução do espaço do Direito Público, não se pode esquecer que o Direito não é surdo,

cego ou neutro. (BRITTO, op. cit., p. 66).Direito Público contra os excessos do individualismo. O pêndulo oscilou da

sociedade civil para o Estado alcançando, hoje, uma posição intermediária que

“encontra e define novos tipos de interesses valiosos, além da alternativa público

ou privado, que correspondia à summa divisio romanista.”

19

Na arguta observação de Eros Roberto GRAU e Luiz Gonzaga de

MELLO BELLUZO, nas últimas duas décadas do século XX, operou-se uma

nova revolução industrial, a revolução da informática, da microeletrônica e das

telecomunicações. As transformações acarretadas por essa nova revolução são

sentidas diretamente na realidade social cotidiana e acabam por afetar a própria

estrutura do  direito posto de forma que “a abstração [despersonalização] do

poder político – tal como já ocorre com o poder econômico  – [o poder está não

mais nos Estados nacionais, mas nas ‘redes’] torna inadequadas nossas categorias

epistemológicas e insuficientes os grandes modelos desde os quais nos

reconhecíamos e identificávamos os companheiros e os inimigos, como anota

Alicia Ruiz (1995/3).”

20

Com razão, Gilberto DUPAS aponta como uma das diferenças centrais

entre modernidade e pós-modernidade: na modernidade, a “separação da

sociedade civil e Estado (Direito Civil e Direito Público)” e na pós-modernidade,

a “interpenetração e tendência à confusão”.

21

 Cumpre identificar as razões

justificadoras deste fenômeno.

 

19

 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.  As provedorias de justiça no estado

contemporâneo: guardiãs da ética e da cidadania.  Revista da Procuradoria Geral do

Estado, Porto Alegre, v. 20, n. 49, p. 17, 1993.

20

 GRAU, Eros Roberto; BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello.  Direito e mídia, no

Brasil.  In: FIOCCA; GRAU [org.], op. cit., p. 109.

21

 DUPAS, op. cit., p. 43.CRITÉRIOS PARA DISTINÇÃO ENTRE DIREITO  PÚBLICO E

PRIVADO

CRITÉRIO DO “INTERESSE PÚBLICO”

Carlos Alberto da MOTTA PINTO analisa, criticamente, vários

critérios doutrinários utilizados para separar os campos do Direito Privado e do

Direito Público. Entre eles, a  teoria do interesse segundo a qual a norma de

Direito Público tem por finalidade a tutela do interesse público e a do Direito

Privado, dos interesses particulares. 

Para o autor, a falibilidade do primeiro critério residiria na

circunstância de que o Direito como um todo visa proteger simultaneamente

interesses públicos e particulares. O critério somente poderia ser mantido se

procurasse exprimir uma nota tendencial: se o Direito Público visa,

predominantemente, a proteção dos interesses da coletividade, o Direito Privado,

os interesses particulares. Ainda assim, o critério mostra-se problemático porque

(i) não seria possível, em muitos casos, identificar o interesse predominante, se

público ou privado e (ii) há normas que, embora destinadas à tutela de interesses

públicos, são classificadas como de Direito Privado por força da tradição.

22

Na doutrina brasileira, Maria Celina BODIN DE MORAES distingue

as relações jurídicas de caráter público e de caráter privado com base no interesse

preponderante.

23

Se o conceito de “interesse público” não está apto, por si só, a servir de

critério seguro para a distinção entre Direito Público e Privado, cumpre analisar

as suas funções na cultura administrativista.

 

22

 PINTO, op. cit., p. 24-26.

23

 MORAES, Maria Celina Bodin.  A caminho de um Direito Civil constitucional. 

Revista de Direito Civil, São Paulo, n. 65, p. 26, 1997.O INTERESSE PÚBLICO NO DIREITO ADMINISTRATIVO

INTERESSE PÚBLICO: PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO

Sérgio FERRAZ constata que “o conceito de interesse público

configura um dos pontos centrais do Direito Público, a exigir elaboração

cuidadosa, detida e exclusiva.”

24

 Afinal, o regime jurídico administrativo

estrutura-se, segundo Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, sob dois

princípios, de matriz constitucional: supremacia do interesse público sobre o

particular e indisponibilidade do interesse público pela Administração.

25

“A quem pertence o ar que respiro?”  – perguntou, certa feita, Mauro

CAPPELLETTI. A pergunta faz pensar que, tradicionalmente, tem-se

caracterizado o interesse pelo seu titular  – se o interesse é do indivíduo, diz-se

que o interesse é individual, se da coletividade, diz-se que o interesse é público,

se do Estado enquanto pessoa jurídica, diz-se que o interesse é estatal.

O interesse público constitui, assim, um “interesse transpessoal”

26

 que,

embora pressupondo os interesses individuais, deles se diferencia.

27

 

24

 FERRAZ, Sérgio.  Regulação da economia e livre concorrência: uma hipótese. 

Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, n. 1, p. 203, jan./fev./mar.

2003.

25

 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.  Curso de direito administrativo.  13. ed. 

São Paulo: Malheiros, 2001.  p. 28-56. Para Eros Roberto GRAU, há “juristas que se

recusam a praticar o pensamento crítico” e “nutrem uma concepção do princípio da

supremacia do interesse público que resulta por privilegiar não o que se poderia supor

ser o interesse do Estado [=sociedade], mas os interesses, privados, daqueles que detém

o controle do Estado, usando o  vocábulo ‘controle’, aqui, sob o sentido de dominação.

Em seus tratados e cursos, bem assim em ensaios sibilinos, o Estado é descrito como

deve ser, jamais como  é.” GRAU, Eros Roberto.  O Estado, a liberdade e o direito

administrativo.  Revista Crítica Jurídica, Curitiba, n. 21, p. 165, jul./ 2002.

26

 Caracterizando o interesse público como “transpessoal”, José Luis BOLZAN DE

MORAIS.  Do direito social aos interesses transindividuais: o estado e o direito na

ordem contemporânea.  Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.  p. 119.A teoria do mestre italiano, Renato  ALESSI, é a que mais tem

influenciado os administrativistas pátrios. Conforme este autor, a função é o

poder concedido em relação à realização de determinados interesses, tratando-se

de poder soberano, à realização de interesses públicos, coletivos. Estes interesses

públicos, coletivos, dos quais a Administração deve buscar a satisfação, não são

os interesses da Administração enquanto aparato organizativo autônomo, mas o

interesse público primário, ou seja, o interesse da coletividade. O interesse do

aparato administrativo é simplesmente um dos interesses secundários. A

peculiaridade da posição jurídica da Administração Pública reside justamente

nisto: a sua função consiste na realização do interesse coletivo (público

primário).

28

Com efeito, Renato ALESSI não ignora a existência de um interesse

sencundário, próprio do aparato administrativo. Todavia, o interesse secundário

somente pode ser o norte do exercício da função administrativa quando

coincidente, e na fronteira desta coincidência, com o interesse coletivo ou

interesse público primário. Fixa, portanto, com a noção de interesse secundário a

acessoriedade e, mais ainda, a subordinação do interesse da Administração

enquanto tal ao interesse da Administração enquanto representante da

coletividade.

 

27

 “Interesse público é uma realidade conceitual própria, autônoma, inconfundível, e

não, simples oposição a interesse individual.” FERRAZ, Regulação..., op. cit., p. 203-

204.

28

 ALESSI, Renato.   Principi di diritto amministrativo: i  soggetti attivi e

l’esplicazione della funzione amministrativa.  4. ed.  Milano: Giuffrè, 1978.  Tomo I.  p.

226-227. Com posição similar, Jean RIVERO identifica o interesse público, fim da

Administração, como o interesse geral que “não é, portanto, o interesse da comunidade

considerada como uma entidade distinta dos que a compõem e superior a eles; é muito

mais simplesmente, um conjunto de necessidades humanas — aquelas a que o jogo das

liberdades não provê de maneira adequada e cuja satisfação, todavia,  condiciona a

realização dos destinos individuais.” RIVERO, Jean.   direito administrativo. 

Coimbra: Almedina, 1981.  p. 15. Renato ALESSI defende também que o interesse secundário do aparato

pode facilmente chocar-se com o interesse público primário (da coletividade).

Daí a necessidade de instrumentos que garantam o vínculo entre ação

administrativa e realização do interesse público primário. Garantia contra a

possibilidade do uso do poder de ação concedido à Administração em favor da

realização do interesse público para uma ilegítima realização do interesse

secundário da própria Administração, ou que é pior, do interesse pessoal das

pessoas físicas prepostas aos ofícios administrativos.

29

Nesse sentido, como explica Sérgio FERRAZ, “não é a natureza da

pessoa que determina a natureza do direito ou do interesse abordado. Interesse

público não é, pois, aquele pertinente à pessoa pública que  o titularize; nem

mesmo é, pura e simplesmente, o interesse do público.”

30

 Aduz Sérgio FERRAZ,

na linha doutrinária de Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, que o interesse

público não é nem a soma dos interesses individuais nem sua expressão média.

Resulta como o interesse do todo no qual os interesses particulares são

coeficientes inafastáveis:

Dá-se, então, uma convivência de círculos de atuação, como agudamente

divisou Rogério Ehrhardt Soares (op. cit., p. 103 et seq.). No primeiro dos

concêntricos, desfruta o particular de um domínio limitado externamente por

outro círculo, o do que expressamente lhe é vedado pelo sistema. E advém

então o círculo maior, dos interesses indivisíveis de uma pluralidade, do todo,

transcendência essa que substancia a idéia-cerne de interesse público. Nessa

dimensão, aí sim, pode-se ver no interesse público não a simples soma, mas o

 

29

 ALESSI, Principi..., op. cit., p. 227-228.

30

 FERRAZ, Regulação..., op. cit., p. 203.conjunto dos interesses pessoais dos indivíduos, considerados em sua

qualidade de membros da sociedade.

31

Todavia, como assinala Odete MEDAUAR, não é possível adotar-se

uma concepção hegemônica de interesse público  – de que haveria “o” interesse

público – frente a uma sociedade complexa e pluralista:

[...] a uma concepção de homogeneidade do interesse público, segue-se,

assim, uma situação de heterogeneidade; de uma idéia de unicidade, passouse à concreta existência de multiplicidade de interesses públicos. A doutrina

contemporânea refere-se à impossibilidade de rigidez na prefixação do

interesse público, sobretudo pela relatividade de todo padrão de

comportamento. Menciona-se a indeterminação e a dificuldade de definição

do interesse público, a sua difícil e incerta avaliação e hierarquização, o que

gera crise na sua própria objetividade.

32

Para Andrea PUBUSA, diante do princípio democrático e o da

soberania popular, não existe mais uma estrutura e um interesse do Estado

separados da comunidade, ou interesses do Estado ou dos seus órgãos que não

sejam instrumentais em relação à comunidade nem, enfim, decisões despidas de

 

31

 FERRAZ, Regulação..., op. cit., p. 205. Numa perspectiva contrária, Jürgen

HABERMAS: “O nexo interno entre democracia e Estado de direito consiste em que se,

por um lado, os cidadãos só podem fazer uso adequado da sua autonomia pública se

forem suficientemente independentes em virtude de sua autonomia privada que esteja

uniformemente assegurada; por outro, só podem usufruir uniformemente a autonomia

privada, se, como cidadãos, fizerem o emprego adequado dessa autonomia política. Por

isso, direitos fundamentais liberais e políticos são inseparáveis. A imagem da

exterioridade e da interioridade é enganosa  – como se existisse um âmbito nuclear de

direitos elementares à liberdade, com a prerrogativa de poder pleitear prioridade diante

dos direitos à comunicação e à participação. Para o tipo de legitimação ocidental, a cooriginariedade entre direitos políticos fundamentais e direitos individuais fundamentais

é essencial.” HABERMAS, Jürgen.  Sobre a legitimação pelos direitos humanos.   In:

MERLE, Jean-Cristophe; MOREIRA, Luiz (org.).  Direito e legitimidade.  São Paulo:

Landy, 2003.  p. 72,

32

 MEDAUAR, Odete.  O direito administrativo em evolução.  São Paulo: RT, 1992. 

p. 182.elementos de democraticidade. Assim, “il funzionario ‘non serve il governo e

comanda sui cittadini’, ma ‘serve esclusivamente i cittadini’”.

33

A Administração

não deve cuidar de interesses do Estado, mas dos cidadãos.

34

A lição adapta-se ao texto constitucional brasileiro. A Constituição

estabelece que o Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito,

fundamentado na soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores

sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político (art. 1.º, da CF). Se a

cidadania e a dignidade da pessoa humana constituem fundamentos republicanos,

não é possível que o interesse perseguido com o exercício da função

administrativa não encontre seu princípio e fim no interesse dos próprios

cidadãos, tanto numa perspectiva individual, quanto coletiva.

35

Concorda-se com Manoel de OLIVEIRA FRANCO SOBRINHO, para

quem “não se pode falar em Direito Administrativo onde os administrados não

possuem garantias jurisdicionais para no processo mais elementar defenderem a

normatividade, fruto da lei e da ordem jurídica [...]. Encaminhar, portanto, ao

judiciário, processo administrativo sem requisitos de forma e trâmites, será o

mesmo que tirar do administrado as garantias que vinculam a administração ao

estado de direito. A simples intervenção necessária da administração não torna o

interesse privado em interesse sem proteção jurídica. Proteger o interesse público

 

33

 PUBUSA, Andrea.  Diritti dei cittadini e pubblica amministrazione.  Torino: G.

Giappichelli Editore, 1996.  p. 48-49.

34

 PUBUSA, op. cit., p. 49.

35

 Numa concepção ainda mais abstrata, Pietro PERLINGIERI identifica o interesse

público com a “realização e a atuação dos direitos invioláveis do homem”, caracterizado

por instâncias pessoais e “pela atuação de mais eqüânimes relações sociais fundadas no

solidarismo e no personalismo, vistas como almas indefectíveis do projeto do

constituinte republicano.” “O interesse público, portanto, não como superestrutura

burocrática e superindividual, mas como síntese e atuação equilibrada dos valores das

pessoas consociadas na unidade de seus direitos, como titulares de um direito de igual

status personae.” PERLINGIERI, Pietro.  Perfis do direito civil:  introdução ao Direito

Civil constitucional.  2. ed.  Rio de Janeiro: Renovar, 2002.  p. 285.não é desconhecer o interesse privado. Muito menos num regime de garantias

que dá substrato ao estado de direito.”

36

É certo que o conceito de interesse público primário, enquanto interesse

da coletividade e fim de toda a atividade administrativa, encontra alicerces na

Constituição brasileira. Disso não há dúvida. É correto que a assertiva não

constitui nenhuma novidade. Afinal, a publicidade do interesse perseguido pela

Administração deriva da idéia de República, no sentido de BODIN e KANT,

como “coisa pública” e que hoje significa “comunidade” ou “coletividade

política”.

37

 Todavia, mostra-se como um dever do jurista buscar novos

instrumentos de efetivação deste ideal que, embora antigo, incita ao abandono

das trilhas batidas e rotineiras por onde tendem a enveredar, guiadas pelo pesado

e rígido braço do hábito, todas as formas de atividade humana, sem exclusão da

investigação intelectual e científica.

38

Em Conferência em memória de Conway, C. D. Darlington, ao abordar

o conflito entre a sociedade e a ciência, em 1948, na cidade de Londres,

asseverou ser necessária a criação de um “Ministério do Desassossego, de um

 

36

 FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira.  Os direitos administrativos e os direitos .

processuais.   Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 111, p. 30,

jan./mar. 1973.  Como observa Carlos E. Delpiazzo,  “la categorización del Estado de

Derecho se alcanza, antes que por su sometimiento formal al orden jurídico, por la

realización de los valores que hacen a los fines de su obrar, entre los que se destaca la

misión esencial que le compete no sólo en la defesa sino en la promoción de la vida”.

DELPIAZZO, Carlos E.  Dignidad humana y derecho.  Montevideo: Universidad de

Montevideo, 2001.  p. 31.

37

 CANOTILHO, José Joaquim Gomes.   Direito constitucional.  6. ed. Coimbra:

Almedina, 1995.  p. 484. No direito argentino, Germán J. BIDART CAMPOS assinala

que a jur isprudência da Corte Suprema de Justiça Argentina tem encarado o bem-estar

geral do Preâmbulo como equivalente ao clássico bem comum ou bem público, porque

“lo público (al modo de la res publica romana) es la cosa pública o cosa de todos. No

de un sector o de una parte, sino de la comunidad total.” CAMPOS,  Germán J. Bidart. 

Los bienes colectivos en el derecho constitucional de los derechos humanos. In: GRAU;

CUNHA, op. cit., p. 60.

38

 DEWEY, John.   A filosofia em reconstrução.  Tradução de Eugênio Marcondes

Rocha.  São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958.  p. 10-11.  gerador, bem uniforme, de aborrecimentos, de um destruidor da rotina, de um

sabotador da complacência”. Alinhado a esse pensamento, John DEWEY

sustenta que “a rotina do hábito tende a embotar até a investigação científica,

constitui um óbice ao caminho da descoberta e do trabalhador científico  ativo.

Isto porque descoberta e investigação são expressões sinônimas como ocupação.

A ciência é uma procura, não a conquista do imutável. Novas teorias, traduzindo

diferentes pontos de vista, são mais respeitadas do que certas descobertas que não

representem mais do que acréscimos quantitativos ao cabedal já existente. Com

referência ao domínio exercido pelo hábito, tem o conferencista palavras

apropriadas, quando afirma que os grandes inovadores, na órbita das ciências,

‘são os primeiros a temer e a duvidar de suas descobertas.’”

39

 

Retornando ao tema do interesse público, mostra-se indispensável

trazer à colação o lúcido pensamento de Jorge SALOMONI, notável

administrativista argentino precocemente falecido. Afirmava SALOMONI que

“(...) El interes público tiene dos consecuencias concretas em el sistema: em

primer lugar, es el fundamento y limite de la potestad administrativa. Esto es, la

Administración solamente puede actuar em función del interes público. Y si

actúa fuera del interes público, el acto es nulo. Por lo tanto, es el fundamento y es

el limite.”

40

 É curial, também, investigar até que ponto o interesse público não se

confunde, na prática, com o interesse do administrador que, fugazmente,

encontra-se no exercício do poder. Até onde a assertiva – interesse  público

primário enquanto interesse da coletividade  – encontra-se no “mundo do dever

ser” e não no “mundo do ser”? Eros Roberto GRAU põe à prova o argumento:

 

39

 DEWEY, op. cit., p. 11.

40

SALOMONI, Jorge Luis. Ordenamientos Internacionales y Ordenamientos

Administrativos Nacionales  – Jerarquía, impacto y derechos humanos. Ed. AD-HOC,

Buenos Aires, 2006, pág. 23[...] é necessário tomarmos consciência de que o individual sempre esteve,

entre nós, inserido no Estado, de modo a conformar e a determinar o interesse

público, mesmo e especialmente o chamado interesse público primário.

E assim é porque as virtudes republicanas são imanentes à ordem social, mas

não podem realizar-se entre nós, porque essa ordem, aqui, é  privatista. A

noção que temos da coisa pública relaciona-se não ao povo, porém ao Estado.

O público é o  estatal, não o  comum a todos. Desconhecemos a sentença de

Ulpiano, demarcando a distinção entre ambos: os bens pertencentes ao Estado

são abusivamente chamados de ‘públicos’, pois assim devem ser

considerados unicamente os bens que pertencem ao povo romano. E

desconhecemos também, inteiramente, a síntese de Cícero:  res publica, res

populi.

O  individualismo possessivo que toma conta de nós permite visualizarmos

exclusivamente o que pertence a cada um e os bens que são ditos  públicos

assim são chamados porque  arrebatados pelo Estado, este inimigo de cada

um, concebido como instituição rigorosamente separada da sociedade.

41

O tangenciamento da noção de interesse público importará duas

perspectivas: substancialista (a publicidade marca o interesse a ser perseguido

com a função administrativa: o interesse é público porque pertence à

coletividade

42

)  e procedimentalista (o agir administrativo deve ser público  ou

transparente, como regra).

 

41

 GRAU, O Estado, a liberdade e o direito administrativo..., op. cit., p. 164.

42

 Este também o sentido a ser atribuído ao art. 175, da CF, ao dispor que “Incumbe ao

Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,

sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.” Serviço “público”

significa, para além de outras interpretações possíveis, que a prestação do serviço deve

ser norteada pelo interesse público. Após essa ligeira acomodação de idéias é possível lançar algumas

considerações decorrentes.

A Constituição Federal Brasileira incorpora normas sobre a

Administração Pública e a atividade administrativa e sobre as relações regidas

pelo Direito Civil. Daí a doutrina referir-se a um Direito Civil Constitucional

composto por normas constitucionais aplicáveis às relações privadas. O que, de

resto, não é um fenômeno exclusivo do Direito Administrativo ou do Direito

Civil, mas comum a outras esferas do Direito.

Faz-se necessário uma interpretação que privilegie a incidência da

Constituição na resolução de conflitos relacionados ao Direito Administrativo ou

ao Direito Civil, o que resulta em afirmar o consórcio entre norma constitucional

e infraconstitucional, resultante da simbiose do texto constitucional e do texto

legal.

A idéia de sistema constitucional importa a construção de vasos

comunicantes entre searas ¾ Direito Administrativo e Direito Civil  ¾ que só

aparentemente se encontram em estado de isolamento. Todavia, a instrumentação

sistemática não pode obscurecer as especificidades de cada uma dessas

dimensões, que começam no próprio texto constitucional, como é o caso da

repartição de competências legislativas. Como a competência para legislar sobre

Direito Civil é privativa da União e sobre Direito Administrativo é, salvo

disposição constitucional em contrário, comum dos entes federados (União,

Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios), a incidência das normas do

Código Civil na atividade administrativa depende de um exame, no caso

concreto, da sua compatibilidade com o princípio federativo. A noção de interesse público, tal qual trabalhada por Jorge Salomoni, e

fundada na consagração dos direitos humanos, desempenha um papel central na

teoria do Direito Administrativo. A atividade da Administração Pública orientada

para o perseguimento do interesse público primário, (i) implica para seu sujeito

ativo a observância do princípio da publicidade dos meios e o da imparcialidade

no tratamento dos particulares, (ii) encontra no processo administrativo

importante garantia para manutenção de sua correta atuação. O conceito de

função administrativa – como exercício de um poder atrelado necessariamente a

uma finalidade estranha ao agente  – impede o entendimento da

discricionariedade administrativa como liberdade de conduta.

O Direito Privado de hoje incorpora mecanismos para horizontalizar

relações jurídicas verticalizadas de fato, em razão do exercício do poder

econômico e social. A horizontalidade, nas relações privadas, será alcançada com

a incidência da norma jurídica. Nessa perspectiva, compreende-se o critério das

posições dos sujeitos na relação jurídica (supremacia/verticalidade versus

igualdade/horizontalidade) para a distinção entre Direito Público e Privado.

A Administração Pública, enquanto projeção do Estado, e nas suas

múltiplas vestes (personalidade jurídica de Direito Público ou de Direito

Privado), não é titular de “autonomia da vontade”, consectário da personalidade

humana. E mais, a Administração Pública, enquanto pessoa jurídica, não tem

acesso à titularidade dos direitos fundamentais. Por essa razão, na incidência de

normas juscivilistas em relações jurídicas nas quais um dos pólos seja a

Administração Pública (mesmo sob a veste da personalidade jurídica de Direito

Privado), o Direito Administrativo não deixa escapar a sua influência.A doutrina brasileira tem apontado circunstâncias responsáveis pela

dificuldade na construção de uma teoria capaz de delimitar as esferas entre

Direito Público e Direito Privado. Um dos fatores seria a própria

constitucionalização do Direito Civil (expoente do Direito Privado) e do Direito

Administrativo (expoente do Direito Público). A aceitação da supremacia da

Constituição e da sua penetração em toda a malha do ordenamento jurídico

contribui para a dificuldade na contraposição entre Direito Público e Privado.

A crise do Direito Civil revela-se (i) na perda da noção do Código Civil

como centro valorativo do ordenamento jurídico privado, (ii) na quebra da

dicotomia entre Direito Público e Privado como duas fronteiras distintas e

impermeáveis, (iii) no movimento de descodificação das matérias afetas às

relações privadas com a proliferação de leis esparsas, que se comportam como

verdadeiros microssistemas, (iv) na publicização do Direito Privado com o

“dirigismo contratual”, (v) na incapacidade do Direito Civil clássico de tutelar as

novas relações jurídicas de forma justa. Tudo isto levaria, segundo alguns

autores, a uma verdadeira “morte” do Direito Civil (o que parece ser, além de um

certo “modismo”, um exagero). Há problemas também do lado  do Direito

Administrativo. Na constituição de uma pessoa jurídica de Direito Privado da

Administração Pública indireta ou a outorga da prestação de  atividades

administrativas a particulares, já se encontra o paradoxo da mescla entre privado

e público (formas privadas para alcance de fins públicos).

Diante desse quadro, o Código Civil não esgota o tratamento do Direito

Civil, que também está regulado pela Constituição ou mesmo por leis esparsas.

De outro, nem tudo que está  dentro do Código Civil é propriamente matéria de

Direito Civil. No Direito brasileiro, em se tratando de Administração Pública, é

preciso, muitas vezes, identificar a matéria de Direito Civil a fim de determinar se o Código Civil poderá ser aplicado aos entes da federação distintos da União

(Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios) em razão da divisão de

competências legislativas, corolário da federação. A separação entre Direito Civil

e Direito Administrativo não tem efeito meramente didático.

Na atualidade, há uma dissociação entre órgãos, fins e meios. A

situação clássica era do ente público agindo para um fim de interesse geral com

meios exorbitantes do direito comum. Na primeira dissociação, percebe-se que os

entes públicos já não monopolizam a atividade administrativa; na segunda: a

atividade administrativa não é sempre conduzida com meios exorbitantes do

direito comum; na terceira: o fim de interesse geral é objeto de intensas

mudanças a esmorecer os seus contornos.

Um Direito Administrativo concebido para cidadãos que buscam se

defender do Estado mostra-se inadequado para proteger administrados ansiosos

por ações positivas do Estado. Será necessário separar, dogmaticamente,

institutos relacionados à “Administração restritiva ou agressiva” e à

“Administração prestadora de serviços”. Ao lado da assunção de formas jurídicoprivadas pela Administração Pública, há uma tendência de alargamento do

desenvolvimento da função administrativa pelos particulares.

Primeiro, a Administração Pública e o Direito Privado. A incorporação

de formas jurídico-privadas pela Administração Pública  e a correspondente

incidência subsidiária do Direito Privado não pode importar déficit de controle da

gestão do patrimônio público ou dos direitos dos cidadãos. Segundo, os

particulares que colaboram com a Administração Pública e o Direito

Administrativo. A participação de particulares no exercício da funçãoadministrativa não pode deixar de atrair a incidência do Direito Administrativo,

quando se trata de proteger, mais uma vez, a gestão de um patrimônio afetado

aos interesses da coletividade e os direitos dos cidadãos (usuários ou potenciais

usuários).

A Administração Pública exerce função administrativa, uma função

onde o poder e o interesse público encontram-se jungidos pelo manto de uma

relação de necessidade causal. O Estado não pode se comportar como um

particular: o Estado (a Administração Pública) não é um particular, é sustentado

pela coletividade, ainda que o Direito positivo possa admitir, em casos

excepcionais, o exercício de atividades próprias dos particulares. Permitir a

equiparação do Estado aos particulares implica aceitar que aquele possa

perseguir interesses públicos secundários desvinculados dos interesses públicos

primários.

Identificar, no Direito positivo brasileiro, as vinculações jurídicopúblicas, presentes em toda atividade desenvolvida pela Administração ou no

exercício de uma função administrativa (e, aqui, a hipótese do particular como

sujeito ativo da função administrativa), constitui tarefa imprenscindível, ainda

mais quando se assiste a um verdadeiro  desmonte  do espaço de garantia do

cidadão em face das prerrogativas públicas.

Esta  mudança paradigmática – de direitos fundamentais negativos a

direitos fundamentais positivos – demandará, como reflexo, uma mudança

paradigmática também no campo da Administração: da Administração de

agressão para a Administração de prestação, do Estado de Direito para o Estado

Social, da Administração de autoridade para Administração de cooperação.

Tratar da incidência do novo Código Civil nas relações administrativas

exige a compreensão da precedência histórica do Direito Civil em relação ao

Direito Administrativo.O novo Código Civil Brasileiro, na esteira da tradição do Codex

anterior, cuida de matérias timbradas pelo cunho administrativo. Destacam-se a

desapropriação, referida no art. 1.275, inciso V, considerada como causa de

perda da propriedade imóvel, as restrições ao uso anormal da propriedade (art.

1.277 e seguintes), a passagem forçada (art. 1.285), a imposição de passagem de

cabos e tubulações (art. 1.286) a regulação das águas e questão dos aquedutos

(arts. 1288 e seguintes), a limitação entre prédios (art. 1.297) e o direito de

construir (art. 1299 e seguintes), temas marcantemente administrativos.

A doutrina administrativista tem ressaltado, no tocante ao regime de

concessão ou permissão, que os bens afetados à prestação do serviço público,

embora não sejam considerados “bens públicos”, sofrem a incidência do Direito

Público justamente para garantir um princípio basilar nesta seara: o da

continuidade do serviço público. Ora, sem abraça




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